Embora a Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças tenha sido criada para protegê-las, sua aplicação automática e descontextualizada tem produzido graves injustiças com muitas mães e crianças brasileiras.
O desafio é assegurar que as decisões judiciais sejam sensíveis à violência doméstica e que haja escuta qualificada de mulheres e crianças, verificação da efetividade de medidas protetivas e de articulação entre cooperação internacional e direitos humanos, para que mulheres não sejam impedidas de exercer a maternidade e as crianças não sofram traumas ainda mais profundos.
A avaliação foi feita nesta terça-feira (9) em audiência pública sobre a aplicação da convenção, nos casos em que mães brasileiras voltam para o país com seus filhos em razão de violência doméstica. O debate foi promovido por subcomissão temporária que trata do tema, criada pelo senador Flávio Arns (PSB-PR) no âmbito da Comissão de Direitos Humanos (CDH).
O debate apontou que é importante repensar caminhos, fortalecer garantias, capacitar os operadores do direito na complexidade da violência de gênero e assegurar que a aplicação da convenção esteja alinhada com o interesse superior da criança e a proteção e dignidade da mãe.
Esse foi o segundo debate sobre o tema realizado pela comissão temporária. O primeiro ocorreu em julho, com a presença de dez mães e de três organizações de defesa de direitos dessas mulheres.
Diante do cenário atual, é necessário refletir sobre como seria possível melhorar a aplicação da convenção, para que o trabalho não se transforme em instrumento de revitimização de mulheres e desproteção das crianças, ressaltou a senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), que preside a subcomissão.
— O que a gente pode notar é que, em nome da celeridade e da cooperação entre Estados, mães que buscam apenas se proteger e proteger seus filhos contra violências foram tratadas como criminosas em vez de vítimas — afirmou.
No entender de Mara, esses episódios mostram o quanto é necessário aprimorar a aplicação judicial da convenção por meio da perspectiva de gênero e da criação de mecanismos que assegurem a proteção integral da criança, e não apenas pela formalidade jurídica.
— Muitas vezes a palavra da mãe não é considerada, as crianças não são ouvidas ou os seus relatos são minimizados. E denúncias graves de abusos físicos e sexuais perdem força diante da presunção de legitimidade atribuída ao pai estrangeiro.
Mara ressalta que a desigualdade de acesso à Justiça agrava ainda mais o quadro. Litígios transacionais são longos caros e profundamente assimétricos, colocando a mulher em desvantagem diante de um genitor que, muitas vezes, dispõe de mais recursos financeiros.
No caso brasileiro, soma-se a isso o fato de que a própria Advocacia Geral da União, no exercício de sua função de representar o Brasil como Estado-parte da convenção, atua em juízo para sustentar pedidos de retorno formulados por pais estrangeiros acusados de violência doméstica e diversos outros abusos, ressaltou Mara.
— Essa atuação da AGU, na prática, faz com que a mãe brasileira, já fragilizada por um contexto de violência, tenha que enfrentar, além dos advogados do genitor, também a estrutura jurídica de seu país, do próprio Estado para o qual fugiu em busca de proteção — afirmou.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4245 e 7686, de 2025, reconheceu que a violência doméstica contra a mãe representa grave risco para a criança e deve ser considerada como uma exceção ao retorno, em conformidade com o artigo 13-B da convenção.
— Esse entendimento é um marco, mas só terá efeito real se incorporado às práticas do Judiciário e das instituições responsáveis pela aplicação da convenção. Não podemos acidentar que mães sejam criminalizadas por buscar abrigo quando são vitimais de violência doméstica, ou que crianças sejam brutamente separadas de suas principais cuidadoras, que são suas mães, em nome de formalidades internacionais — afirmou.
Empresária e mãe de três crianças, cujo caso resultou em relevante precedente acerca da aplicação da convenção, Maria Clara Botelho Peres destacou que a sua situação envolveu uma criança com paralisia cerebral e risco iminente de morte caso tivesse que retornar para a Colômbia, onde vive seu pai. Ela apontou “omissões” do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na análise da matéria de fato, “apesar de estar em jogo a vida, a saúde e a integridade” do seu filho Rafael. Com isso, [o tribunal] deixou de apreciar a gravidade concreta e comprovada da situação, limitando-se a aplicação formal da convecção de Haia, afirmou.
Desembargador e coordenador nacional da Rede Brasileira de Juízes de Enlace, Guilherme Calmon ressaltou que, desde 2021, vêm sendo desenvolvidas ações para o aperfeiçoamento da interpretação e aplicação das normas da convenção, de 1980. Entre elas, a elaboração de um protocolo de atuação judicial sob a perspectiva de gênero nos casos de violência doméstica na subtração de crianças, o qual vem sendo divulgado no sistema judiciário.
Professora titular de direito internacional privado e arbitragem na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Carmen Tiburcio destacou que a convenção tem alguns pressupostos para sua aplicação. Em primeiro lugar, que tenha havido remoção ilícita da criança do país de sua residência habitual, ou retenção lícita fora do país de sua residência habitual. Ambos os países da residência e refúgio devem ser parte da convenção e a criança deve ter até 16 anos. A convenção parte da premissa que todas as questões relacionadas à criança devem ser regidas pela lei do país da residência habitual e decididas pelo juízo do país da residência habitual.
Procurador dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, Nicolao Dino defendeu a interpretação da convenção à luz da Constituição; a necessidade de observância do princípio do melhor interesse da criança; a verificação dos limites da cooperação jurídica internacional; a necessidade de realinhamento do papel institucional da AGU em relação às disposições da convenção; e a necessidade de reforço de filtros institucionais em casos de violência doméstica.
Procuradora regional, vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e presidente da ANPR Mulheres, Ana Paula Mantovani disse que não se pode aceitar a aplicação automática de um tratado internacional que resulte em violação da Constituição, da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança. O STF reconheceu a compatibilidade da convenção com a Constituição, mas fixou balizas importantes, como a interpretação à luz da realidade da violência doméstica, seja vítima a mãe ou a criança, sem atropelos de direitos fundamentais e a perspectiva de gênero na análise dos casos, afirmou.
Coordenadora de Assistência Jurídica Internacional da Defensoria Pública da União (DPU), Daniela Brauner defendeu a análise da convenção a partir do viés feminino, levando em consideração as questões atinentes à violência doméstica e criminalização de condutas. Ela também apontou a prática de xenofobia e preconceitos de que são vítimas as mulheres por parte das próprias autoridades.
Presidente da Comissão Permanente de Políticas de Prevenção às Vítimas de Violências, Testemunhas e de Vulneráveis do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Renata Gil de Alcântara Videira destacou que o Ministério das Relações Exteriores tem um papel relevante na questão, porque precisa receber os pedidos de ajuda das mães, dar encaminhamento e fazer com que a situação de sequestro se dissipe em proteção ao melhor interesse do menor. Segundo ela, o julgamento das ADIs pelo STF trouxe de verdade uma mudança de interpretação, a qual traz parâmetros importantes para os operadores da convenção, que devem ser aplicados de forma efetiva.
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